Novas regras do vale-alimentação vão gerar concorrência em mercado de R$ 90 bi, diz ministério
Paulo Solmucci, presidente da Abrasel, afirma que a entidade concorda com parte das mudanças, como a interoperabilidade mas não com outras, como a portabilidade, que estimularia o mercado de “cashback” para atrair clientes e, com isso, transferiria os custos para os estabelecimentos
Enquanto prepara a regulamentação das novas regras para o vale-alimentação, o Ministério do Trabalho e da Previdência afirma que as mudanças devem abrir o mercado e estimular a entrada de novas empresas no setor que movimenta R$ 90 bilhões por ano.
A pasta defende as alterações, que têm gerado temores entre empresas especializadas e restaurantes.
Bruno Dalcolmo, secretário-executivo do Ministério do Trabalho e da Previdência, afirma que as mudanças são necessárias porque as empresas usam os benefícios tributários sem garantir a qualidade nutricional para os funcionários e também porque o instrumento tem taxas pesadas, pressionando os custos para o próprio trabalhador.
“É um mercado absolutamente verticalizado, que coloca de joelhos supermercados e restaurantes”, afirma à Folha.
Dalcolmo diz que as regras do benefício jamais foram analisadas profundamente ao longo de 45 anos de existência e que as mudanças foram debatidas em dezenas de reuniões com as empresas do setor.
As novas regras foram anunciadas em decreto deste mês e são voltadas à legislação do chamado Programa de Alimentação do Trabalhador (o PAT), criado na década de 1970 para garantir um mínimo de refeições a quem integrava principalmente os canteiros de obras do país.
Ao longo do tempo, a inciativa privada foi se adaptando às regras e gerou empresas especializadas como Alelo, Sodexo e Ticket (que o governo chama de tiqueteiras).
“O programa foi desenvolvido lá atrás para não deixar o trabalhador com fome, só que hoje é diferente”, afirma Dalcolmo.
“As pessoas estão querendo qualidade nutricional, para questões de saúde, como doenças coronarianas, de pressão arterial e obesidade. Só que ninguém olha para isso hoje, a empresa faz um contrato com uma tiqueteira e lava as mãos”, diz.
Dalcolmo afirma que os problemas decorrentes da má alimentação prejudicam a atividade do país, inclusive diminuindo a produtividade dos trabalhadores. “O volume de perdas econômicas é brutal”, diz.
Com o decreto, o governo passa a exigir que as empresas que usam o PAT “deverão dispor de programas destinados a promover e monitorar a saúde e a aprimorar a segurança alimentar e nutricional de seus trabalhadores”, com formato a ser estabelecido em conjunto pelos Ministérios da Saúde e do Trabalho.
Em outra frente, o governo pretende estimular a entrada de novas empresas que operam os benefícios.
Uma das medidas de maior impacto para o setor é a proibição do chamado rebate —desconto que as chamadas tiqueteiras oferecem às contratantes sobre o valor de face dos benefícios.
Dalcolmo afirma que, para conseguir negócios com empresas com grande número de funcionários, as tiqueteiras dão, por exemplo, R$ 100 em benefícios ao trabalhador, mas só cobram parte disso da empresa (R$ 90, por exemplo). Em geral, a tiqueteira com maior desconto ganha o contrato.
Na visão do governo, isso gera problemas no programa porque as perdas dessa negociação vão ser compensadas com a cobrança de taxas dos restaurantes —que por sua vez acabam repassando tais custos aos próprios trabalhadores que ali consomem.
“São cobrados diferentes tipos de taxas. Tem a taxa de anualidade, a taxa de utilização de sistema, a taxa da maquininha. Os restaurantes são reféns”, afirma. “[E o custo] vai para o pequeno restaurante, que vai repassar para todos os trabalhadores, os que usam o vale e os que não usam”, diz.
De acordo com o decreto, as empresas agora “não poderão exigir ou receber qualquer tipo de deságio ou imposição de descontos sobre o valor contratado”. O descumprimento vai gerar exclusão do PAT.
O governo também estabeleceu no decreto que o trabalhador poderá pedir ao patrão a portabilidade gratuita dos recursos de uma operadora de pagamentos para outra.
Além disso, o texto prevê que as operadoras de pagamento permitam o compartilhamento de sua rede credenciada para transações de outras marcas —a chamada interoperabilidade.
As empresas têm um prazo de um ano e meio para se adaptarem às mudanças na maior parte das regras. Com isso, o governo diz esperar haver novas empresas disputando o mercado.
“Estamos reorganizando e introduzindo concorrência em um mercado de R$ 90 bilhões”, afirma Dalcolmo, citando como exemplo o interesse de companhias como o iFood.
“No âmbito regional, tem várias que operam localmente e as regras abrem um conjunto de possibilidades enormes. Com a interoperabilidade, uma empresa pode nascer em um dia e no dia seguinte ter acesso a toda a rede credenciada pelas outras instituições”, diz.
As empresas especializadas têm se queixado que o decreto torna mais rigoroso o vale-alimentação, mas deixa de fora o auxílio-alimentação —instrumento criado na reforma trabalhista de 2017 do governo Michel Temer (MDB) e que pode passar a ser usado por empresas para driblar as regras.
Dalcolmo diz que a demanda das empresas pela regulamentação do instrumento foi feita no fim das várias discussões conduzidas pelo governo e que não era possível atender o pedido por meio do decreto.
“Eu não posso impor uma restrição via decreto se não há essa previsão legal. Isso só pode ser feito via lei”, afirma.
Procurada, a ABBT (Associação Brasileira das Empresas de Benefícios ao Trabalhador) —que representa companhias como Alelo, Sodexo e Ticket— não comentou as falas do secretário-executivo. Em posicionamento na semana passada, ela havia lamentado que o decreto não tinha incluído o auxílio-alimentação e disse que empresas têm explorado o instrumento de forma irregular.
Paulo Solmucci, presidente-executivo da Abrasel, afirma que a entidade concorda com parte das mudanças, como a interoperabilidade —mas não com outras, como a portabilidade, que estimularia o mercado de “cashback” (recompensa em dinheiro) para atrair clientes e, com isso, transferiria os custos para os estabelecimentos.
Entre as principais preocupações, no entanto, está a falta de regulamentação do auxílio-alimentação. Para ele, os problemas vistos até agora no vale-alimentação continuariam a ser observados no novo instrumento, impulsionando os custos para os restaurantes.
“As empresas estão se movendo em uma velocidade muito rápida [para o auxílio-alimentação], está tomando dimensões assustadoras. Então ao invés de o problema ser resolvido está sendo agravado”, afirma o presidente da Abrasel.
Solmucci demonstrou ter influência sobre o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ao ser um dos principais articuladores de um programa de socorro aos empresários para não haver demissões durante a pandemia —o que resultou no Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda.
Por meio da medida, as empresas poderiam cortar salários ou suspender contratos de trabalho temporariamente, e o Tesouro fornecia um auxílio aos funcionários afetados.
Para Solmucci, esperar que a mudança para restringir o auxílio-alimentação seja feita por projeto de lei pode demorar meses ou até anos. Por isso, ele defende que o governo edite uma MP (medida provisória) para resolver o assunto o quanto antes. “Ou a gente faz isso via MP ou vai ter uma distorção brutal”,diz.
Fonte: Folha S.Paulo